A década de 1930 chega e traz com ela várias novidades para a zona rural carioca. Uma delas é o próprio nome pelo qual passa a ser designada – Sertão Carioca. Entre 1931 e 1932, Magalhães Corrêa, naturalista autodidata, especializado em taxologia, escreve um estudo pioneiro sobre a zona rural do Distrito Federal para o jornal Correio da Manhã através de vários artigos, que foram posteriormente reunidos numa edição única pelo IHGB em 1936. O nome por ele cunhado foi amplamente reconhecido e desde então a zona rural passou a ser chamada de Sertão Carioca pela imprensa, vereadores, autoridades municipais, partidos e pelos próprios habitantes da região. Fato compreensível, se levarmos em conta que o referido matutino era o jornal de maior vendagem em toda a cidade. Com base em “pallidas notas, apanhadas em excursões”, como ele mesmo diz, o autor procura montar um painel dos usos e costumes da população da região. Em termos geográficos, o trabalho de M. Corrêa traz uma importante mudança: em sua obra, a zona rural passa a compreender os distritos de Campo Grande, Santa Cruz, Guaratiba e Jacarepaguá e não mais as circunscrições de Inhaúma, Irajá e Méier. M. Corrêa entendia que a forma de vida e, em particular, o modo de interação e integração dos habitantes com a natureza por meio da predominância de uma economia de subsistência, evidenciavam a existência de típicos sertanejos. Curiosamente, Corrêa pouco fala sobre as atividades ligadas à lavoura, a não ser a da banana, concentrando em descrever as atividades daqueles que consideravam ser os “tipos” mais significativos da região, como os carvoeiros, oleiros, cantoneiros, cabeiros, caçadores, cesteiros, machadeiros e tamanqueiros.
Para Carlos Sarmento, M. Corrêa via a zona rural como “um universo aparte, com dinâmica própria, muito mais vinculado a um passado mítico de perfeita sintonia entre o homem e o meio natural”. Numa crônica de nome “O Sertão Carioca”, Ricardo Palma dá forma a esta visão em poucas mas reveladoras linhas:
Tudo por ali é um vasto mundo ainda virgem, com um homem ainda meio primitivo, vivendo da caça, da pesca, do fruto silvestre, em rancho à beira do brejo ou na matta, solitario com os seus cães, a sua quasi piroga, o seu pão de fogo irmão do bacamarte, a sua rêde, a sua tarrafa, o seu isqueiro, o seu facão, a sua panella de barro, o seu moquem.
E o próprio M. Corrêa a ratificava ao escrever que: “Nesse ambiente bem brasileiro, e um tanto isolado, impera ainda a alma pura dos nossos caboclos, tudo lembra o que é nosso, os typos e costumes.” De certa maneira, o autor consagrava a noção comum que tomava sertão como um lugar distante, não apenas geograficamente, mas longe da civilização, por cultiva hábitos quase primitivos.
Mas havia também importantes diferenças entre a noção de sertão empregada por Magalhães daquela empregada pelos sanitaristas do final da década de 1910: em primeiro lugar, Magalhães retinha da antiga ideia de sertão o conceito de consciência nacional autêntica, desconsiderando por completo o conceito de doença. Havia algumas menções ao conceito de abandono, embora de forma rarefeita. O curioso é que o próprio autor fornece elementos que nos levam a relativizar a idéia de uma região esquecida pelos poderes públicos. Vejamos o caso dos tropeiros responsáveis pelo comércio da banana produzida na região:
Sahindo, como de costume (...) à noite, de seus ranchos, com sua tropa, ora a cavallo, ora a pé, vão como formigas em correição, pelas estradas do Pica-Páo, das Furnas, dos Três Rios, do Rio Grande, de Guaratiba, até a Tijuca, Andarahy, Boca do Matto, Meyer, Engenho de Dentro, Inhaúma, como verdadeiros abnegados, lutando com todos os elementos e, finalmente, abandonados por nossos dirigentes;
Porém, logo adiante o autor revela um detalhe que demonstra que a ausência do poder público não era tão absoluta como ele próprio nos tenta levar a crer. Assim conta o autor: quando aqueles tropeiros, “por ventura, comettem qualquer delicto, applica-se-lhes logo a lei, mas lei feita para ‘almofadinha da cidade’”. Em outra passagem, o autor novamente apresenta uma informação que confirma que a intervenção dos poderes públicos no cotidiano de boa parcela dos moradores da região, sob a forma da repressão a algumas iniciativas destes, não era algo insignificante. Corrêa nota que há na Barra da.Tijuca um restaurante “com aspecto dos da cidade, isto é, burguez em tudo: na construção, no serviço e nos donos”. Preocupado com a possibilidade de construções como essa descaracterizarem a paisagem daquela região, o autor se pergunta: “não será possível construir-se hotel, bar ou albergue, com caracter rural? Construcções de pedra, com aspecto campestre, physionomia rural, bem rústico, com conforto e bem nosso?” Ao que o próprio autor responde e explica: “Sim, mas a Prefeitura prohibe construcções no alinhamento de ruas e estradas que não tenham a eterna platibanda. E querem coisas nossas, novas, bem pittorescas, quando não há liberdade de construcções na zona rural!”
Uma segunda diferença estava no fato do autor ver como positiva a não “incorporação” da região pelo “esforço civilizatório”. Mesmo porque, a designação dessa região como um “Sertão Carioca” expressava a idéia de um espaço idílico vinculado diretamente à noção de uma áurea outrora perdida. Era o Sertão Carioca um paraíso perdido no processo civilizatório. O freqüente recurso que faz M. Corrêa de imagens pictóricas quando da descrição de paisagens demonstra bem esse tipo de visão. Um exemplo é a descrição de uma das grandes cascatas da região, a “Cascata Grande”
formada por duas quedas d’água, hoje muito reduzidas, a não ser depois das chuvas que toma aspecto majestoso, feito pela mão da natureza. A cascata é extraordinária pela sua múltipla visão, talvez um dos pontos mais bellos da paizagem carioca; entre as duas quedas, a água quase que parada, é um espelho do céo, das montanhas e da vegetação. Este conjunto de quedas e remanso dá a impressão de estar-se em um paiz de fadas....
A beleza e os “mystérios” das praias da Barra da Tijuca eram tão extraordinários para Corrêa, que a sua descrição é tecida de modo que fique difícil distinguir o que é real e o que é ilusório. Na “paizagem” idealizada, ou melhor, “observada” pelo primeiro cronista desta “vasta zona terra carioca”, seres reais e mitológicos parecem coexistir harmonicamente:
Nesse ambiente ingênuo e encantador, onde a alvissima e fina areia se transforma aqui e além em dunas, apparecem encantadoras silhuetas de Eva, de maillot ou sunga, deixando-se beijar pelas águas límpidas dessa mysteriosa mistura fluvial marítima. Ellas se transformam de mundanas em verdadeiras nymphas, nesses casebres de pescadores, os quaes cedem os quartos da esposa e filhos para a mutação, como se fora um laboratório de Fausto, em troca de algumas pratas.
Ao difundir uma representação da zona rural como um lugar paradisíaco, textos como o de M. Corrêa tornavam possível que se pensasse a região como uma área de turismo e, por que não, de expansão de um mercado imobiliário voltado para a construção de casas de veraneio. Talvez essa nem fosse a intenção de M. Corrêa ao descrever a “natureza encantadora desse recanto”, mas a linguagem por ele introduzida estava em fina sintonia com acontecimentos que acarretariam importantes transformações na paisagem social do Sertão Carioca: a linguagem que exaltava as “bellezas” da região seria incorporada nos anúncios das companhias imobiliárias de modo a destacar os atrativos dos terrenos postos à venda. Um outro aspecto que cabe mencionar, é que a representação formulada por M. Corrêa, destacando as belezas naturais e o potencial turístico da região, chocava-se frontalmente com a visão de uma zona rural tomada por pestilências. O fato de Magalhães ter se concentrado em uma área específica do Sertão Carioca (sul da Baixada de Jacarepaguá), não parecer explicar essa divergência: a Baixada de Jacarepaguá, assim como a de Sepetiba, ainda eram consideradas os maiores “focos” de epidemia do Distrito Federal. Decerto, o autor destacava a questão do abandono da região por parte dos “governantes”, e o alto índice de desmatamento de suas matas seria um exemplo. Mas é inegável que a sua ênfase, ao contrário dos sanitaristas de duas décadas atrás, recaia sobre a face positiva do Sertão Carioca. Finalmente, por mais que o texto de Corrêa carregasse no tom idílico de suas descrições, permitindo por exemplo, que Ricardo Palma considerasse o Sertão Carioca como um “vasto mundo ainda virgem”, é bem verdade também que por diversas vezes ele chamava atenção para uma importante característica da região: os litígios envolvendo a posse e a propriedade da terra. Voltaremos a eles no segundo capítulo, tratando inclusive de um litígio citado pelo próprio Magalhães Corrêa. Por enquanto, fiquemos apenas com a descrição feita pelo autor de um caso ocorrido nas terras do antigo Engenho d’Água. Tais terras teriam sido vendidas por Pitutinha, filho do Barão da Taquara, seu último proprietário, à Companhia Radio Internacional do Brasil, só que nelas havia alguns “pobres sitiantes agricultores e cabeiros”. Estes depois de receberem a “promessa de serem remunerados pelas suas benfeitorias” foram convencidos a deixá-las. Daí
foram saindo recebendo em troca um papel com os dizeres: ‘a fulano de tal, vale 500$000 mil réis ou um conto’ e assinado Fonseca Telles*, porém, ao irem receber os vales no escriptorio, lá diziam não serem conhecedores do accordo, e assim ficaram muitos dos nossos agricultores e cabeiros sem sitio e sem dinheiro...”
Em outra passagem o autor lembraria que alguns desses lavradores já estavam se organizando e se mobilizando, procurando com isso defender seus interesses, principalmente, o direito que tinha em trabalhar e viver nas terras onde nasceram e que lhes foram legadas por seus antepassados.
* Era o sobrenome da família do Barão da Taquara.